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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

AS QUATORZE REGRAS PARA SOFRER À MANEIRA DE JESUS CRISTO

(...) Não é, porém, suficiente sofrer: o demônio e o mundo têm, seus mártires; é preciso sofrer e levar a cruz nas pegadas de Jesus Cristo: - sequatur me! que me siga! - ou seja, da maneira que Ele a carregou. E eis, para isto, as regras que deveis seguir:

Não procurar cruzes propositadamente ou pela própria culpa.

1º: Não procureis cruzes propositadamente ou por vossa culpa; não se deve fazer o mal para que dele resulte um bem (90); não se deve, sem inspiração especial, fazer as coisas de maneira má, para atrair sobre si mesmo o desprezo dos homens. É antes preciso imitar Jesus Cristo, de quem se disse fez bem todas as coisas (91), não por amor próprio ou por vaidade, mas para agradar a Deus e conquistar a alma do próximo. E se  executardes os vossos trabalhos o melhor que puderdes, não vos hão de faltar contradições, perseguições, nem desprezos, que a Divina Providência vos enviará contra vossa vontade e sem vos consultar.

Consultar o bem do próximo.

2º: Se praticais algum ato indiferente, mas do qual o próximo se escandaliza, ainda que fora de propósito, abstende-vos dele, por caridade, para que cesse o escândalo dos pequenos; o ato heróico de caridade que praticardes nessa ocasião vale infinitamente mais do que aquilo que fazíeis ou pretendíeis fazer.

Se, entretanto, o bem que fazeis é necessário ou útil ao próximo, e escandalizar, sem razão, algum fariseu ou mau espírito, consultai uma pessoa prudente, para saber se o que fazeis é necessário e muito útil ao bem do próximo; e, se ela assim o julgar, continuai e deixai falar, contanto que vos deixem agir, e respondei, em tais ocasiões, o que Nosso Senhor respondeu a alguns de seus discípulos que vieram dizer-lhe que os Fariseus se haviam escandalizado com as suas palavras e ações: “Deixai-os falar. São cegos”. (92).

Admirar, sem pretender atingi-la, a sublime virtude dos santos.

3º: Apesar de alguns santos e pessoas importantes terem pedido, procurado e, por meio de ações ridículas, atraído sobre si mesmos cruzes, desprezos e humilhações, adoremos e admiremos apenas a ação do Espírito Santo sobre suas almas, e humilhemo-nos diante de tão sublime virtude, sem ousar voar tão alto, um vez que, comparados a essas rápidas águias e rugidores leões, não passamos de criaturas sem coragem e sem força de vontade. (93)

Pedir a Deus a sabedoria da Cruz.

4º: Podeis, entretanto, e mesmo o deveis, pedir a sabedoria da Cruz, que é uma ciência saborosa e experimental da verdade, que nos faz ver, à luz da fé, os mais ocultos mistérios, entre os quais o da Cruz, e isto só se obtem mediante grandes trabalhos, profundas humilhações e orações fervorosas. Se precisardes do espírito principal (94), que nos faz levar corajosamente as mais pesadas cruzes; do espírito bom (95) e manso, que nos faz saborear, na parte superior da alma, as mais repugnantes amarguras; do espírito são e reto (96), que procura só a Deus; da ciência da cruz, que encerra todas as coisas; numa palavra, do tesouro infinito cujo bom emprego torna a alma participante da amizade de Deus (97), pedi a sabedoria; pedi-a incessante e fortemente, sem hesitar (98), sem receio de não a obter, e ela vos será dada, infalivelmente, e em seguida vereis claramente, por experiência própria, como pode ser possível desejar, procurar e saborear a cruz.

Humilhar-se das próprias faltas, sem se perturbar.

5º: Quando, por ignorância ou mesmo por vossa culpa, cometerdes algum erro de que resulte para vós alguma cruz, humilhai-vos imediatamente diante de vós mesmos, sob a mão poderosa de Deus (99), sem vos perturbar voluntariamente, dizendo: “Eis, Senhor, uma peça que me pregou meu ofício”! E se houver pecado na falta que cometestes, aceitai a humilhação de vosso orgulho. Algumas vezes, e até muitas veses, Deus permite que seus maiores servos, os mais elevados em graça, cometam as faltas mais humilhantes, a fim de humilhá-los aos seus próprios olhos e aos olhos dos homens, a fim de tirar-lhes a vista e o pensamento orgulhoso das graças que lhes dá e do bem que fazem, a fim de que, segundo a palavra do Espírito Santo, nenhuma carne se glorifique diante de Deus (100).

Deus nos humilha para purificar-nos

6º: Ficai bem persuadidos de que tudo o que existe em nós está inteiramente corrompido (101) pelo pecado de Adão e pelos pecados atuais; e não apenas os sentidos do corpo, mas todas as potências da alma; e que, logo que o nosso espírito corrompido olha, refletida e complacentemente, algum dom de Deus em nós, esse dom, ação ou graça fica todo poluído e corrompido e Deus dele desvia os seus olhos divinos. Se os olhares e os pensamentos do espírito do homem estragam assim as melhores ações e os mais divinos dons, que diremos dos atos da própria vontade, que são ainda mais corrompidos que os do espírito? (102)

Não é de espantar, depois disto, que Deus sinta prazer em esconder os seus no segredo de sua face (103), para que não sejam manchados pelos olhares dos homens e pelos seus próprios conhecimentos. E, para escondê-los assim, o que não faz e não permite este Deus ciumento?! Quantas humilhações lhes proporciona!

Em quantas faltas os deixa cair! De que tentações permite sejam atacados, como S. Paulo! (104) Em que incertezas, trevas e perplexidade os deixa! Ah! como Deus é admirável nos seus santos e nos caminho pelos quais os conduz à humildade e à santidade!

Evitar nas cruzes, o perigo do orgulho.

7º: Procurai bem, portanto, evitar crer, como os devotos orgulhosos e cheios de si, que vossas cruzes são grandes, que são provas de vossa fidelidade e testemunhas de um singular amor de Deus para convosco. Esta armadilha do orgulho espiritual é muito sutil e delicada, mas cheia de veneno. Deveis crer: 1) que vosso orgulho e moleza vos levam a considerar palhas como se fossem traves; picadas como se fossem chagas, um rato como se fosse um elefante; e uma palavrinha no ar, - um nada, na verdade, - como se fosse uma injúria atroz e um cruel abandono; 2) que as cruzes que Deus vos envia são antes castigos amorosos de vossos pecados - e de fato o são -, que sinais de especial benevolência; 3) que, seja qual for a cruz que Ele vos enviar, ainda assim vos poupa infinitamente, em virtude do número e da enormidade dos vossos crimes, que só deveis considerar à luz da santidade de Deus, que nada de impuro tolera e que atacastes; à luz de um Deus moribundo e aniquilado de dor, por causa de vosso pecado, e à luz de um inferno sem fim, que merecestes mil vezes e talvez cem mil; 4) que na paciência com que sofreis há muito mais de humano e natural do que o julgais: provam-no as pequenas mitigações; as procuras secretas de consolação; as aberturas de coração - tão naturais - a vossos amigos e, talvez, ao vosso diretor; as desculpas tão finas e prontas; as queixas, ou melhor, as maledicências tão bem urdidas e tão caridosamente expressas contra os que vos fizeram algum mal; as referências e complacências delicadas para com vossos males; a crença de Lúcifer de que sois algo de grande (105) etc. Nunca terminaria se me fosse necessário descrever as voltas e reviravoltas da natureza, mesmo nos sofrimentos.

Tirar maior proveito dos pequenos sofrimentos que dos grandes.

 
8º: Tirai proveito dos pequenos sofrimentos e mesmo mais que dos grandes. Deus não olha tanto o sofrimento quanto a maneira por que se sofre. Sofrer muito e mal é sofrer como condenado; sofrer muito e corajosamente, mas por uma causa má, é sofrer como mártir do demônio; sofrer pouco ou muito, mas sofrer por Deus, é sofrer como santo.

Se é verdade que se pode escolher as cruzes, isto é mais certo quanto às cruzes pequenas e escondidas quando nos vêm paralelamente às grandes e visíveis (106). O orgulho da natureza pode pedir, procurar e mesmo escolher e abraçar as cruzes grandes e visíveis; mas escolher e levar bem alegremente as cruzes pequenas e ocultas só pode ser o efeito de uma grande graça e de uma grande fidelidade a Deus. Fazei, pois, como o comerciante com o seu negócio: tirai proveito de tudo, não deixeis perder-se a mínima parcela da verdadeira Cruz, mesmo que seja uma picada de mosca ou de alfinete, a indelicadeza de um vizinho, uma injúria por descuido, a perda de um níquel, uma perturbaçãozinha da alma, um leve cansaço do corpo, uma dorzinha num dos membros etc. Tirai proveito de tudo, como o merceeiro em sua mercearia, e, assim como ele enriquece em dinheiro, juntando moeda por moeda em seu cofre, breve estareis ricos em Deus. Ao menor contratempo que sobrevir, dizei: “Deus seja bendito! - (107) Meu Deus, eu Vos agradeço”, depois escondei na memória de Deus, que é vosso cofre, a cruz que acabais de ganhar, e só vos lembreis dela para dizer: Obrigado! ou Misericórdia!

Amar a cruz, não com amor sensível, mas racional e sobrenatural.

9º: Quando vos dizemos para amar a cruz, não falamos em amor sensível, que é impossível à natureza. Distingui bem, portanto, estes três amores: o amor sensível, o amor racional, o amor fiel e supremo; ou, em outras palavras: o amor da parte inferior, que é a carne; o amor da parte superior, que é a razão; e o amor da parte suprema, ou cimo da alma, que é a inteligência esclarecida pela fé.

Deus não vos pede que ameis a cruz com a vontade da carne. Sendo ela inteiramente corrompida e criminosa, tudo o que dela se origina é corrompido e ela não pode, por si mesma, estar sujeita à vontade de Deus e à sua lei crucificadora. Eis por que, ao falar dela no Horto da Oliveiras, Nosso Senhor exclama: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!” (108) Se a parte inferior do homem em Jesus Cristo, ainda que santa, não pôde amar a cruz sem desfalecimento, com mais forte razão a nossa, que é toda corrompida, há de a repelir. Podemos, é verdade, experimentar, por vezes, até mesmo alegria sensível pelo que sofremos, como aconteceu a vários santos; mas essa alegria não vem da carne, ainda que nela esteja; vem apenas da parte superior, que se acha tão cheia da divina alegria do Espírito Santo, que a faz estender-se até à parte inferior, de tal sorte que em tal ocasião até mesmo a pessoa mais crucificada pode dizer: Meu coração e minha carne estremeceram de alegria no Deus vivo! (109)

Há outra espécie de amor, que denomino racional, e que se acha na parte superior, que é a razão. Este amor é todo espiritual e, como nasce do conhecimento da felicidade de sofrer por Deus, é perceptível e mesmo percebido pela alma, rejubilando-a interiormente e fortificando-a. Este amor racional e percebido, porém - apesar de bom, e de muito bom - nem sempre é necessário para que se sofra alegre e divinamente.

É porque há outro amor, do cimo ou ápice da alma, dizem os mestres da vida espiritual, - ou da inteligência, afirmam os filósofos -, pelo qual, sem experimentar qualquer alegria dos sentidos, sem perceber nenhum prazer racional na alma, é possível amar e saborear, pela visão da fé pura, a cruz que carregamos, muito embora tudo esteja em guerra e estado de alarme na parte inferior, que geme, se queixa, chora e procura lenitivo, de tal sorte que se possa dizer, como Jesus Cristo: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!” ou, com a Santíssima Virgem: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a Vossa palavra!” É com um desses dois amores da parte superior que devemos amar e aceitar a cruz.

Sofrer toda sorte de cruzes, sem exceção e sem escolha.

10º: Decidi-vos, queridos Amigos da Cruz, a sofrer toda sorte de cruzes, sem exceção e sem escolha: toda pobreza, toda injustiça, toda humilhação, toda contradição, toda calúnia, toda aridez, todo abandono, toda pena interior ou exterior, dizendo sempre: Meu coração está preparado, meu Deus, meu coração está preparado (110). Preparai-vos, pois, para serdes abandonados pelos homens, pelos anjos e pelo próprio Deus; para serdes perseguidos, invejados, traídos, caluniados, desacreditados e abandonados por todos; para sofrer fome, sêde, mendicidade, nudez, exílio, prisão, tortura e todos os suplícios, ainda que não os tenhais merecido, pelos crimes que vos impuserem (111). Imaginai, enfim, que, depois de ter perdido vossos bens e vossa honra, de haver sido lançados para fora de vossa casa, como Jó e Santa Isabel, rainha da Hungria, que vos joguem na lama, como àquela santa, e vos arrastem por sobre o estrume, como a Jó, todo purulento e coberto de úlceras, sem vos darem ataduras para vossas chagas ou, para comerdes, um pedaço de pão que não recusariam a um cavalo ou a um cão; e que, além desses males extremos, Deus vos deixe à mercê de todas as tentações dos demônios, sem derramar sobre vossa alma a mínima consolação sensível.

Crede firmemente que esse é o ponto supremo da glória divina e a felicidade perfeita de um verdadeiro e perfeito Amigo da Cruz (112).

Os quatro estimulantes do bom sofrimento.
11º: Para ajudar-vos a sofrer bem, tomai o santo hábito de olhar quatro coisas:

1º) O olhar de Deus

Primeiramente o olhar de Deus, que, como um grande rei, do alto de uma torre, olha complacentemente e louvando-lhe a coragem, o seu soldado que peleja.

Que olhará Deus na terra? Os reis e imperadores em seus tronos? Muitas vezes Ele os contempla com desprezo. As grandes vitórias dos exércitos do Estado? As pedras preciosas? Numa palavra: as coisas que são grandes aos olhos dos homens? O que é grande aos olhos dos homens é abominação diante de Deus (113) Que olhará Ele, então, com prazer e complacência e de que pedirá notícias aos anjos e aos próprios demônios? Um homem que, por Deus, se bate com a sorte, o mundo, o inferno e ele próprio, um homem que carrega alegremente a sua cruz. Não viste na terra uma grande maravilha que todo o céu contempla com admiração?, disse o Senhor a Satanás: “Não viste meu servo Jó” (114), que sofre por mim?

2º) A mão de Deus

Em segundo lugar, considerai a mão deste poderoso Senhor, que permite todo o mal que da natureza nos advém, desde o maior até o menor; a mão que colocou um exército de cem mil homens no campo de batalha (115) e faz cair as folhas das árvores e os cabelos de vossa cabeça (116); a mão que, havendo rudemente atingido Jó, vos toca docemente pelo pouco sofrimento que vos envia. Com essa mão Ele formou o dia e a noite, o sol e as trevas, o bem e o mal; permitiu os pecados que se cometem e que vos melindram; não lhes fez a malícia, porém lhes permitiu a ação.

Assim, quando virdes um Sémei injuriar-vos e apedrejar-vos, como ao rei Davi, (117) dizei a vós mesmos: “Não nos vinguemos. Deixemo-lo, porque o Senhor lhe ordenou de agir assim. Sei que mereci toda sorte de ultrajes, e é justo que Deus me castigue. Parai, braços meus: Parai, língua minha. Não ataqueis. Nada digais. Este homem ou esta mulher me injuriam por palavras ou por obras; são embaixadores de Deus, que vêm de Sua misericórdia, para exercer vingança amistosa. Não irritemos Sua justiça usurpando os direitos de Sua vingança; não desprezemos a Sua misericórdia resistindo às Suas amorosas chicotadas, para que ela não nos reconduza, por vingança, à pura justiça da eternidade.”

Olhai uma das mãos de Deus que, onipotente e infinitamente prudente, vos sustenta, enquanto a outra vos atinge; com uma das mãos Ele mortifica e com a outra vivifica; rebaixa e exalta, e, com seus dois braços, doce e fortemente, alcança, de um polo ao outro, a vossa vida (118); docemente, não permitindo que sejais tentados e provocados acima de vossas forças: - fortemente, secundando-vos com graça poderosa e correspondente à violência e duração da tentação e da aflição; fortemente, ainda uma vez, tornando-se Ele próprio, segundo o diz pelo espírito de sua Santa Igreja, “vosso apoio à borda do precipício perto do qual vos encontrais, vosso companheiro no caminho onde vos perdeis, vossa sombra no calor que vos caustica, vossa vestimenta na chuva que vos molha e no frio que vos enregela; vossa carruagem na fadiga que vos aniquila, vosso socorro na adversidade que vos visita, vosso bastão nos caminhos escorregadios e vosso porto no meio das tempestades que vos ameaçam de ruína e naufrágio”(119).

3º) As chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado

Em terceiro lugar, olhai as chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado. Ele mesmo vô-lo diz: “Ó vós que passais pelo caminho espinhoso e crucificado por que passei, olhai e vede: olhai com os próprios olhos do vosso corpo e vede com os olhos de vossa contemplação, se vossa pobreza, vossa nudez, vosso desprezo, vossas dores, vossos abandonos são semelhantes aos meus; olhai-me, a mim que sou inocente, e queixai-vos, vós que sois culpados!” (120).

O Espírito Santo nos ordena, pela boca dos Apóstolos, esta mesma contemplação de Jesus Crucificado (121); ordena que nos armemos com este pensamento (122), mais penetrante e terrível para todos os nossos inimigos que todas as outras armas. Quando fordes atacados pela pobreza, pela abjeção, pela dor, pela tentação e pelas cruzes, armai-vos com um escudo, uma couraça, um capacete e uma espada de dois gumes (123), a saber: o pensamento de Jesus Crucificado. Eis a solução de toda dificuldade e a vitória sobre qualquer inimigo.

4º) Ao alto, o céu; em baixo o inferno.

Em quarto lugar olhai, ao alto, a bela coroa que vos espera no céu, se carregardes bem vossa cruz. Foi esta recompensa que sustentou os patriarcas e os profetas em sua fé e nas perseguições; que animou os Apóstolos e os Mártires em seus trabalhos e tormentos. Preferimos - diziam os Patriarcas, com Moisés - sofrer aflições com o povo de Deus, para ser feliz com Ele eternamente, que gozar de um prazer criminoso por um só momento (124). Sofremos grandes perseguições por causa da recompensa (125), diziam os profetas com Davi.

Somos como vítimas destinadas à morte, como espetáculo para o mundo, os anjos e os homens pelos nossos sofrimentos, como a escória e o anátema do mundo (126), diziam os Apóstolos e os Mártires com São Paulo, por causa do peso imenso da Glória eterna que este momento de breve sofrimento produz em nós (127).

Olhemos sobre nossas cabeças os anjos que nos dizem, em alta vos: “Tende cuidado para não perderdes a coroa marcada pela cruz que vos é dada, se a levardes bem. Se não a carregardes bem, outro o fará e vos arrebatará vossa coroa (128). Combatei fortemente, sofrendo com paciência, dizem-nos todos os santos, e entrareis no reino eterno (129)”. Ouçamos enfim Jesus Cristo, que nos diz: “Só darei minha recompensa àquele que sofrer e vencer pela paciência (130)”.

Olhamos embaixo o lugar que merecemos e que nos espera no inferno com o mau ladrão e os réprobos se, como eles, sofremos com murmurações, despeito e vingança. Exclamemos com Santo Agostinho: “Queimai, Senhor, cortai, talhai e retalhai neste mundo para castigar meus pecados, contanto que os perdoeis na eternidade”!

Nunca se queixar da criaturas.

12º: Nunca vos queixeis, voluntariamente e entre murmurações, das criaturas de que Deus se serve para vos afligir. Distingui, para tanto, três espécies de queixas nos sofrimentos.

- A primeira é involuntária e natural: é a do corpo que geme, suspira, se queixa, chora e se lamenta. Quando a alma, como já disse, está resignada com a vontade de Deus, em sua parte superior, não há nenhum pecado.

- A segunda é razoável; é quando alguém se queixa e descobre seu mal aos que podem e devem tratá-lo, como um superior ou o médico. Esta queixa pode ser imperfeita, quando for muito insistente; mas não é pecado.

- A terceira é criminosa: é quando alguém se queixa do próximo para se isentar do mal que ele nos faz sofrer, ou para se vingar; ou quando alguém se queixa da dor que sofre, consentindo nessa queixa e juntado a ela a impaciência e a murmuração.

Receber sempre a cruz com reconhecimento.

13º: Nunca recebais nenhuma cruz sem beijá-la humildemente e com reconhecimento; e quando Deus, todo bondade, vos houver favorecido com alguma cruz um pouco considerável, agradecei-lhe de maneira especial e fazei-o agradecer por outros, a exemplo daquela pobre mulher, que, tendo perdido todos os seus bens em virtude de um processo injusto que lhe moveram, fez celebrar imediatamente uma Missa, com o  dinheiro que lhe restava, a fim de agradecer a Deus a ventura que lhe era concedida (131).

Carregar suas cruzes voluntárias.

14º: Se quereis tornar-vos dignos de receber as cruzes que vos hão de vir sem vossa participação e que são as melhores, carregai outras voluntárias, seguindo os conselhos de um bom diretor.

Por exemplo: Tendes em casa algum móvel inútil pelo qual tendes afeição? Dai-o aos pobres, dizendo: quererias o supérfluo quando Jesus é tão pobre?


Tendes horror a algum alimento? A algum ato de virtude? A algum mau odor? Provai-o, praticai-o, aspirai-o. Vencei-vos.

Amais alguém ou algum objeto um pouco terna e insistentemente demais? Ausentai-vos, privai-vos, afastai-vos do que vos lisonjeia.

Tendes uma natureza muito inclinada a ver? A agir? A aparecer? A ir a algum lugar? Parai, calai, escondei-vos, desviai os olhos.

Odiais naturalmente algum objeto? Alguma pessoa? Procurai-a frequentemente. Dominai-vos.

Se sois verdadeiramente Amigos da Cruz, o amor, que é sempre industrioso, vos fará assim encontrar mil pequenas cruzes, com que vos enriqueceis insensívelmente, sem temor da vaidade, que se mistura tão frequentemente à paciência com que suportamos as cruzes muito visíveis; e porque fostes assim fiéis em pouca coisa, o Senhor vos estabelecerá em muito (132), como o prometeu; isto é, em muitas cruzes que vos enviará, em muita glória que vos preparará (133) ...



Extraído de "Carta Circular aos Amigos da Cruz" - São Luis Maria G. de Montfort.

Visto em: http://catolicosribeirao.blogspot.com.br/2013/08/as-quatorze-regras-para-sofrer-maneira.html.
Download do livro: http://alexandriacatolica.blogspot.com.br/2011/01/carta-aos-amigos-da-cruz-sao-luis-de.html


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Notas:
(90) Axioma bem conhecido dos antigos, aos quais se refere S. Paulo (Rom., 3, 8).
(91) Marc., 7, 37.
(92) Mat., 15, 14.
(93) (No original: “... des poules mouilées et des chiens morts”).
(94) Sl., 50, 14.
(95) Lc., 11, 13.
(96) Sl., 50, 12.
(97) Sab., 7, 14.
(98) Toda esta alínea é um comentário sobre Tg., 5-6.
(99) I Pd., 5, 6.
(100) I cor., 1, 29.
(101) Num trecho paralelo do “Tratado da verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, Montfort atenuou esta declaração, acrescentando posteriormente esta útil correção: “O pecado de nosso primeiro pai nos deixou a todos quase inteiramente...corrompidos.”
(102) O santo autor desmascara aqui o amor-próprio “que se insinua insensívelmente nas melhores ações” (V. D., nº 146).
(103) Sl., 30, 21.
(104) II Cor., 12, 7.
(105) Cf. At., 8,9.
(106) Isto é: aquelas, dentre as cruzes, que são pequenas e obscuras, se comparadas com as grandes e muito visíveis.
(107) Montfort compôs sobre este tema um belo cântico de vinte e duas estrofes, intitulado “O pobre de espírito”. Os 2º e 4º versos de cada estrofe são, invariavelmente: “Deus seja bendito! Deus seja bendito!” (Cânticos: 19º Tradicional).
(108) Lc., 22, 42.
(109) Sl., 83, 3.
(110) Sl., 107, 2;l Sl., 56, 8.
(111) Isto é, que vos “imputarem”.
(112) Nestas linhas sublimes, em que transparece a santa loucura da Cruz, não julgaríamos estar a ouvir São Francisco de Assis dizendo ao Irmão Leão, diante do quadro dos piores desprezados: “Aí está a perfeita alegria”?
(113) Lc., 16, 15.
(114) Jó., 2, 3.
(115) Montfort, sem dúvida, faz aqui alusão ao extermínio do exército de Senaquerib por um Anjo do Eterno, que dizimou, numa noite, cento e oitenta e cinco mil homens. (IV Reis, 19, 35).
(116) Lc., 21, 18.
(117) II Reis, 16, 5-11.
(118) Sab., 8, 1.
(119) Cf. Itinerário dos clérigos.
(120) Parafr. de Jeremias: Lament., I, 12.
(121) Gal., 3, 1.
(122) I Ped., 4, 1.
(123) Ver. Efes., 6, 12-18.
(124) Heb., 11, 25-26.
(125) Ps., 68, 8; 118, 112.
(126) I Cor., 4, 9 e 13.
(127) Cf. II Cor., 4, 17.
(128) Alusão à defecção do 40º martir de Sebaste.
(129) Escritura e Liturgia, passim.
(130) Cf. Apoc., 2, 6, 11, 17, 26; 3, 5, 12, 21; 21, 7.
(131) Cf. Boudon: “Les sainctes voyes de la croix”, liv IV, cap. VI.
(132) Mat., 21, 21 e 23.
(133) Será este o fim da “Carta”? Decerto poderia esta terminar com este pensamento. O Padre Quérard, historiador de Montfort (1887), entretanto, lamenta que a conclusão dela se haja perdido. Na ausência do manuscrito, é difícil resolver a questão.

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