À sombra da Cruz
1.
Almas devotas, procuremos ao menos imitar a esposa dos Cânticos, que
dizia: “Eu assentei-me à sombra daquele que tanto desejei” (Ct 2,3).
Oh!
que doce repouso as almas que amam a Deus encontram nos tumultos deste
mundo e nas tentações do inferno e mesmo nos temores dos juízos de Deus,
contemplando a sós em silêncio o nosso amado Redentor agonizando na
cruz, gotejando seu sangue divino de todos os seus membros já feridos e
rasgados pelos açoites, pelos espinhos e pelos cravos.
Oh!
como a vista de Jesus crucificado afugenta de nossas mentes todos os
desejos de honras mundanas, das riquezas da terra e dos prazeres dos
sentidos! Daquela cruz emana uma vibração celeste, que docemente nos
desprende dos objetos terrenos e acende em nós um santo desejo de sofrer
e morrer por amor daquele que quis sofrer tanto e morrer por amor de
nós.
Ó
Deus, se Jesus Cristo não fosse o que ele é, filho de Deus e verdadeiro
Deus nosso criador e supremo senhor, mas um simples homem, quem não
sentiria compaixão vendo um jovem de nobre linhagem, inocente e santo,
morrer à força de tormentos sobre um madeiro infame, para pagar, não os
seus delitos, mas os de seus mesmos inimigos e assim libertá-los da
morte em perspectiva? E como é possível que não ganhe os afetos de todos
os corações um Deus que morre num mar de desprezos e de dores por amor
de suas criaturas? Como poderão essas criaturas amar outra coisa fora de
Deus?
Como
pensar em outra coisa que em ser gratos para com esse tão amante
benfeitor? “Oh! se conhecesses o mistério da cruz!” disse S. André ao
tirano que queria induzi-lo a renegar a Jesus Cristo, por ter Jesus se
deixado crucificar como malfeitor. Oh! se entendesses, tirano, o amor
que Jesus Cristo te mostrou querendo morrer na cruz para satisfazer por
teus pecados e obter-te uma felicidade eterna, certamente não te
empenharias em persuadir-me a renegá-lo; pelo contrário, tu mesmo
abandonarias tudo o que possuis e esperas nesta terra para comprazeres e
contentares um Deus que tanto te amou.
Assim
já procederam tantos santos e tantos mártires que abandonaram tudo por
Jesus Cristo. Que vergonha para nós, quantas tenras virgenzinhas
renunciaram a casamentos principescos, riquezas reais e todas as
delícias terrenas e voluntariamente sacrificaram sua vida para
testemunhar qualquer gratidão pelo amor que lhes demonstrou este Deus
crucificado.
2.
Como explicar então que a muitos cristãos a paixão de Cristo faz tão
pouca impressão? Isso provém do pouco que consideram nos padecimentos
sofridos por Jesus Cristo por nosso amor. Ah, meu Redentor, também eu
estive no número desses ingratos. Vós sacrificastes vossa vida sobre uma
cruz, para que não me perdesse, e eu tantas vezes quis perder-vos, ó
bem infinito, perdendo a vossa graça! Ora, o demônio, com a recordação
de meus pecados, pretenderia tornar-me dificílima a salvação, mas a
vista de vós crucificado, meu Jesus, me assegura que não me repelireis
de vossa face se eu me arrepender de vos haver ofendido e quiser vos
amar. Oh! sim, eu me arrependo e quero amar-vos com todo o meu coração.
Detesto
aqueles malditos prazeres que me fizeram perder a vossa graça. Amovos, ó
amabilidade infinita, e quero amar-vos sempre e a recordação de meus
pecados servirá para me inflamar ainda mais no vosso amor, que viestes
em busca de mim quando eu de vós fugia. Não, não quero mais separar-me
de vós, nem deixar mais de vos amar, ó meu Jesus. Maria, refúgio dos
pecadores, vós que tanto participastes das dores de vosso Filho na sua
morte, suplicai-lhe que me perdoe e me conceda a graça de o amar.
"A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo" - Santo Afonso Maria de Ligório
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