"(...) Prossigamos e consideremos em que coisas nos devemos unir com a divina vontade.
1) Devemos unir-nos a vontade de Deus nas coisas naturais, como quando faz frio, calor, quando chove, ou em tempo de escassez ou epidemia e em outros casos iguais.
Devemos abster-nos de dizer:
- que intolerável frio!
- que horroroso calor!
- que desagradável estação!
- ou fazermos uso de algumas expressões que mostrem a nossa repugnância para com a vontade de Deus.
Devemos querer tudo como é, porque Deus de tudo dispõe.
São Francisco de Borja, indo uma noite a um convento de sua ordem, enquanto que nevava muito, bateu à porta muitas vezes; porém os padres que estavam dormindo não lh'a abriram. Quando amanheceu, muitos deles lastimavam tê-lo feito esperar tanto fora de casa; mas o santo lhes disse "que ele tirara muita consolação durante aquele tempo, pensando que era Deus quem fazia cair os flocos de neve sobre ele."
2) Devemos unir-nos à divina vontade, quando padecemos fome, sede, pobreza, desolação e deshonra.
Em todo caso devemos dizer: "Senhor, Tu fazes e desfazes. Eu estou contente, desejando unicamente o que tu queres."
E o mesmo devemos dizer, diz Rodrigues, naqueles casos imaginários sugeridos por Satanás, na intenção de nos fazer cair em alguma maldade, ou pelo menos para nos inquietar.
Se alguém de vós dissesse estas e aquelas palavras, ou vos fizesse estas ou aquelas ofensas, que diríeis? Que faríeis? Devemos responder: "Eu diria e faria o que Deus quisesse", e assim nos livraríamos de toda a falta e inquietação.
3) Se temos algum defeito natural, ou no nosso espírito ou no nosso corpo, como ter pouca memória, engenho rude, pouca habilidade, falta de algum membro, saúde fraca, não nos lastimemos.
Pois que merecimento tínhamos para que Deus nos desse uma alma mais sublime, ou um corpo mais bem organizado?
Não podia Ele permitir que nascêssemos na classe dos brutos?
Não podia Ele deixar-nos no nosso nada?
Demos graças ao Senhor por tudo que sua bondade nos tem concedido, e por tudo que faz.
Quem sabe, se tendo nós tido maiores talentos, uma perfeita saúde, um corpo extremamente bem organizado, nos teríamos perdido!
A quantos a sua ciência e o seu saber tem sido a origem de soberba e do desprezo com que tratam os outros, e por isso causa de sua perdição?
Portanto, contentemo-nos com o que Deus nos tem concedido. Não é necessária a beleza, a saúde, nem o engenho agudo, só é necessário o salvar-nos, disse Jesus Cristo.
4) Devemos particularmente ser resignados nas enfermidades corporais, e voluntariamente abraçá-las de maneira e pelo tempo que Deus tenha determinado visitar-nos com elas.
Devemos tomar remédio, para restaurar-nos a saúde, porque tal é a vontade de Deus, porém, não aproveitando estes, devemos unir-nos à vontade divina, o que nos será de muito maior vantagem do que a mesma saúde.
E devemos dizer em ocasiões tais: "Senhor, eu não desejo a saúde nem a doença, desejo unicamente que a vossa vontade seja feita."
É sem dúvida grande virtude não lamentar nossas aflições durante o tempo de dor ou enfermidade; porém, quando estas pesam sobre nós, não nos é vedado descrevê-las aos nossos amigos, nem mesmo rogar a Deus que nos livre delas.
Falo daquelas dores ou enfermidades que atacam severamente, que muitos há tão insofridos, que pela mais leve indisposição ou fadiga, pretendem obter a compaixão de todos.
O mesmo Jesus Cristo, começando a sua Paixão, deu a conhecer a seus discípulos a sua tribulação: "A minha alma está triste até a morte" (S. Mateus, XXVII, 38), e Ele rogou ao seu Eterno Pai que o livrasse dela: "Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice." (S. Mateus 39). Mas o mesmo Jesus nos ensinou que o que devemos fazer depois de tais preces, é resignar-nos imediatamente à vontade divina, dizendo: "não como eu quero, mas como Vós quereis."
Excerto do livro "Tratado da Conformidade com a Vontade de Deus"
de Santo Afonso Maria de Ligório
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